Pó compacto e batom da Make.

Anna Júlia tinha olhos tão redondos como jabuticaba madura, aquelas que você retira do pé e não pensa duas vezes antes de comer. Seus olhos me devoravam toda manhã. Realizava uma caminhada tranquila ás 8h, todos os dias. Não sei se Anna saia cedo de casa para comprar pães ou trabalhar, mas sua presença me devorava. Era como ter certeza que uma pessoa sabia o que queria. E por incrível que pareça, ela nunca olhou pra mim. Talvez o mistério morava nos hiatos do meu pensamento, toda vez que ela educadamente, sorria e continuava a caminhada. Parece que o cinismo empregado em seus passos alterava meu humor. Não suportava quando ela me ignorava ou quando seus olhos, não me devoravam.
Bem, eu sou uma mulher de trinta e cinco anos, que nunca tive uma experiência lésbica. Trabalho como redatora num pequeno jornal. Esses jornais que realizam a cobertura de qualquer evento estranho na cidade. Certa vez, fui a delegacia por conta de um homicídio: um homem matou o próprio pai com uma machadada na cabeça. A cidade ficou em alerta e ainda assim, denunciaram as próprias loucuras da cabeça do ser humano. Depois da afirmação, a cidade compreendeu de onde nasceu tanto ódio... da loucura!
Como nunca tive filhos, não sabia como transcrever o sentimento pretensioso de um novo Édipo que a cidade coroava, mas registrei fielmente, todos os desesperos e soluços da desolada mãe.
Trabalhar como jornalista é algo gratificante. Sempre fui muito sozinha, por isso tenho a mania de registrar meus sentimentos em todos os cantos do quarto. Uma vez, quando criança, minha mãe encontrou embaixo dos meus ursinhos de pelúcia, alguns carinhosos xingamentos que ofereci a ela. Outra vez, todos os anjinhos de enfeite do quarto, ficaram maquiados e tatuados. Algumas interferências chamam minha atenção. Deveria ter sido artista, artista plástica, atriz, ou uma dessas coisas que a mídia divulga: performer. Aposto que se seguisse outro caminho para expor meus desejos profanos, não seria assim. Mas, esse recalque do passado não é algo que minha analista gostaria de saber. Fiz escolhas. Talvez a escrita foi o único ganho artístico que tive a sorte de continuar. Gosto muito de escrever.
Ás vezes, fico pensando (...) "Se talvez escolhesse ser atriz, hoje a escrita seria poesia nos meus dedos. E com certeza, já teria vivido minha primeira experiência lésbica."
Mas não, resolvi permanecer católica e entregar minha devoção aos pequenos mistérios que aconteciam na cidade.
Hoje Anna pintou os lábios. Tão bonita aquela garota. Parecia que tinha 20 anos. Carregava mistérios nos seus olhos de jabuticaba. A cor vermelha realçava o contraste das grandes bochechas. Queria conversar com ela. Mas, o que falaria? Perguntaria a cor do seu batom? Parecia inútil toda encheção do meu pensamento. Não passava de fantasias de uma mulher sozinha aos trinta e poucos anos.
Tenho gatos. Gosto da presença deles. São seres carinhosos e ardilosos. Me sinto tão atraente quando algum dos meus gatos me arranham, parece que tive uma noite de sexo bem selvagem.
Já fui casada. Se talvez tivesse filhos, acho que poderíamos estar juntos até hoje. Atualmente ele é um grande amigo, me visita de vez em quando. Manda mensagens, sempre quer saber como estou. É carinho isso. Outro dia mesmo, ele mandou uma mensagem falando que sua atual namorada esta com ciúmes de mim. Achei tão engraçado aquela história. Por alguns segundos, me senti uma mulher tão atraente e sexy que poderia ter quem eu quisesse ao meu lado, inclusive Anna Júlia. Respondi agradecendo sua atual namorada. Seu ciúmes adolescente aumentou minha estima. Quem diria... Olhei diferente para Ricardo naquele dia, imaginei como seria se tivéssemos continuado juntos. Se seriamos felizes ou se forçaríamos a barra para continuarmos felizes. São coisas que passam na cabeça de uma mulher sozinha. Mas, nossa relação durou 14 anos. Separamos a três anos atrás. Ele foi meu primeiro namorado desde os 18 anos. Talvez por isso não segui a devoção profana dentro de mim. Resolvi segui meus sonhos juvenis de ser jornalista. E aqui estou. Escrevendo a cobertura da minha própria safadeza fantasiada em uma jovem de 20 anos. Se algum dia, contasse isso para Ricardo, com certeza ele entenderia porque comecei a desenhar mulheres de mãos dadas, vestida de noiva e coisas do tipo. Sempre dizia que era para apoiar a causa dos direitos humanos. E talvez fosse... Apoiar o meu direito de ser humana.
Hoje, era uma quinta feira. O departamento onde trabalho estava aquecido e sedento por notícias. Atrasei os 15 minutos clássicos, cheguei com um café nas mãos e uma porção de pão de queijo. Assim que coloquei meus pés no local, fui abordado por Geraldo. Geraldo era meu chefe, um cara bastante preguiçoso e gordo. Geraldo tinha aqueles clássicos bigodes, que o deixava engraçado. Principalmente quando conversa tomando café com leite. Hoje ele me abordou assim, com a xícara de café com leite nas mãos e um cigarro na outra:
- Minha querida! Seus 15 minutos de atraso me custaram um infarto! Precisamos de você, a cidade toda está em alvoroço!
- O que aconteceu? Um novo Édipo nasceu?
- Édipo? Que história é essa Cristina! Precisa para de assistir filmes do Woody Allen e começar a marcar encontros!
Sorri um pouco contrariada. Detestava essa mania indecente das pessoas vigiarem minha vida.
- A ultima vez que senti essa adrenalina foi no caso daquele homem, que a cidade inteira o chamou de louco!
- Qual história, Cristina?
- Aquela que o homem matou o próprio pai.
- Bem lembrado! Aquela história nos fez vender bons jornais. Mas, essa querida Cristina! Essa é a maior loucura que a cidade já viu!
- Poderia me contar o que aconteceu?
- Bem, mas é claro! Sente, por favor.
Com a mão que tinha um cigarro, mostrou uma cadeira próximo a sua mesa. Curiosa com  a sensação, deixei o pão de queijo de lado e comecei a devorar, cada partícula de palavras que saía daquele sujeito.
- E isso é tudo! Sabe porque estou te contando? Adivinha!
- Você quer que eu escreva uma notícia para você?
- Exatamente, adorável Cristina! Exatamente. Já tem pessoas te esperando na portaria.
- Tudo bem! Lá vou eu.
Desci com o café nas mãos. Essa hora ele já estava frio. Na porta do jornal, estavam dois colegas de trabalho e um motorista. Eles pareciam bem ansiosos com a notícia!
- Quem diria! Isso tudo acontecendo na pequena cidade de Silvano Diniz!
- Olha o endereço...
- Ei, é perto da minha casa - disse.
- Será melhor irmos para a delegacia?
Um telefone toca.
- Ok! Estamos indo para ai. - Continuou Denis. - Era o delegado da cidade. Ligou perguntando se estávamos a caminho. Disse para irmos direto onde para o endereço que enviaram. Parece que as jovens ainda estavam no local.
- É para lá mesmo. Engraçado... acho que conheço essa casa.
- Olha a Cristina! Então você é drogada e amiga das donas da boca?
- Não é porque moro próximo ao local, que financio o tráfico.
Justamente por isso que decidi plantar minha própria erva. Talvez por isso não recebesse muitas pessoas em casa, e as pessoas do jornal sempre perguntavam porque não saía muito. Não sabia a delícia que era ter a minha própria companhia quando...
- Chegamos! Corre, corre.
- Bom dia senhor! Estamos aqui. Pode nos apresentar quem são as traficantes do local e nos confirmar a quantidade aprendida?
- Pois bem, já estão gravando?
- Em três... dois... um. - Fábio ligava o gravador e Denis escrevia correndo algumas informações.
- Bom dia Silvano Diniz! Hoje a cidade acordou mais quente do que imaginamos. Ao meu lado está o comandante Abreu. Comandante, vocês poderiam nos dizer como conseguiriam apreender essa quantidade de entorpecentes e como a polícia conseguiu encontrar a boca de fumo?
- Boa tarde equipe do jornal Nascente! Esse é mais um trabalho que ficamos orgulhosos de concluir. Aparentemente, a boca de fumo são de três jovens mulheres. Uma delas já possui passagem pela polícia e as duas últimas, que são gêmeas, começaram no trafico a pouco tempo. Parece que boca modificou seu endereço umas duas vezes, até encontrarmos o local. Uma delas é namorada do bandido Messias. Este foi preso a alguns meses atrás, e ela convidou suas amigas para continuarem a boca. Ela afirma que herdou a boca do Messias. Aqui encontram papelotes de cocaína, uma quantia do entorpecente em pó e 48 gramas de pasta base de cocaína. O flagrante aconteceu quando um meliante foi abordado com a droga, saindo da casa das traficantes. Ao ser questionado, ele afirmou que comprou a droga com as três garotas. Ao ser abordada, uma das donas da casa correu para o banheiro onde jogou parte das drogas no vaso sanitário e deu descarga. A outra parte do material foi apreendida e será levada 1ª Delegacia de Polícia Asa Sul, responsável por desarticular organizações criminosas especializadas no tráfico de drogas.
- Muito obrigada comandante. Poderíamos conversar com as jovens.
- Sim, elas estão ali.
Assim que chegamos no local onde as jovens, aparentemente conversavam algemadas. Fábio tirou uma foto. As três fizerem pose para foto:
- Estamos bonitas? Quer tirar outra?
Curiosamente, quando voltei novamente meus olhos a frente, reconheci aquelas grandes bochechas, aquele batom avermelhado e seus olhos de jabuticaba.
- Então era por isso que... - De uma maneira ou de outra, entendia o motivo das caminhadas matinais de Anna Julia. Reconhecendo aquela garota em sua frente.
- Cristina? As perguntas...
- Claro.
- Podem por favor dizer nomes e idades?
- Bem, meu nome é Lady Natiely Teixeira de Carvalho e tenho 19 anos. Estou no crime, mesmo meu amor. Se fosse para tá em outra vida, eu casava, tá? A boca de fumo é minha, herdei do meu namorado que ta na cadeia e toco o bonde mesmo aqui. Não tenho vergonha. Sou muito mais eu, tá? E se quiserem, dou o nome de toda as patricinhas riquinhas da cidade que compram meu pó.
- Muito obrigada Lady, pelo seu depoimento.
- Quero meu nome na capa do jornal. Põe ai! Lady Nati foi presa e vai colocar a boca no mundo! Até o filho do delegado usa meu pó!
- Claro, daremos atenção ao seu depoimento.
- Agora, vocês... Olha! Vocês são gêmeas.
- Sim, eu me chamo Anna Júlia Nogueira da Silva, tenho 23 anos. Nunca fui presa. To no crime porque preciso pagar minhas contas. Tá vendo esse batom? É da Make amor. Eu também posso usar maquiagem boa, querida.
- A propósito, muito bonito seu batom. Sabe a cor?
- É vermelho cor de puta, combina com boquete matinal, gracinha!
- Eu sou Anna Santana Nogueira da Silva, tenho 23 anos. Sou bandida e linda para caralho, amor! Põe meu rostinho ai. Quero ser famosa.
Após recolher todas as informações necessárias. Voltei ao departamento e comecei a redigir o texto. "Que tiro foi esse?" A principio foi o título da redação: traficantes foram presas e posam para foto.
Quem diria... Foi assim que conheci Anna Júlia e seus lindos olhos de jabuticaba.
Nesse dia, fui dormir apreensiva e curiosa. A coragem daquelas jovens foi o suficiente para querer mudar alguns rumos da minha vida. Será? Na manhã seguinte, comecei a pesquisar sobre performance.

dm.



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