Autodeclaração indígena é um direito ou um câncer?

 Caso você não saiba quem eu sou, e nem quem foi meu avô Custódio, o cacique da viação São Geraldo, ou a história de fuga da minha família que resiste no leste de Minas Gerais, tudo bem... eu também não sabia. 

Nasci num lugar onde a terra vermelha era motivo de brincadeira, e vi a chegada das pedras e do asfalto que de um certo modo, deixou a gente mais "domesticado". Faço parte de um bando de sementes que vinga a história dos mais velhos. Continuamos a bandeira da luta indígena nos espaços que passamos. E para o seu conhecimento, me autodeclarei quem sou quando tinha oito anos de idade. 

Foi vovó Olympia que me contou a nossa história, a tia da escola vendo meu pai não teve dúvidas. Foi registrada por alguns minutos a minha trajetória, meu pai inquieto morreu de vergonha. É o que mamãe conta, tinha muita vergonha. Para ele esse negócio de  tinha ficado no passado, mal sabia ler e escrever quem dirá contar a história da própria família. Só sabia mesmo era tecer, fazer emboscada, pegar passarim e vender. Também vendia sementes e todo artesanato que podia fazer, isso antes de enlouquecer e querer ser branco. Ai a violência começou dentro dele, antes de ir pra gente. 

Mamãe, hoje já não anda... Tem uma história que os encantados me contam... me parece que a bisa Nenê não morreu, voltou pro território depois que o bisavô faleceu. Mas família não acredita, enterraram ela assim como enterraram o silêncio, ficou embaixo da terra. Minha tia, meu tio, tioavô e vovó também sentiram na pele o peso da emboscada. É que viver fugindo no início do século passado é história que ainda corre no meu corpo. Um pequeno grupo ficou muito fechado dentro de si mesmo, tão ensimesmado que não queria se misturar, ai veio a sentença: ataxia espindocelebelar. Vovó fala que foi maldição, minha mãe também... Pediu para não ir atrás disso não. Mas se for qualquer maldição, foi dada pelo o peso da invasão.

Tem uma parenta, que talvez não goste que a chame assim, ela nasceu lá longe... Onde os costumes ficaram mais preservados e, que hoje enfrentam a mesma dor que minhas bisas viveram. Lá longe, ela conta que a autodeclaração indígena é um câncer. Fico eu me perguntando, é um câncer ou uma ataxia? É uma maldição ou um silêncio? Eu não sei dizer, mas me doí muito saber que a minha história pode causar dor a uma parenta que possui tanta resistência. Não podemos apenas ser diferente em nossa existência? Ainda não sei, mas sei que a ataxia é o outro nome que corre na minha família... Talvez eu vire uma árvore igual minha mãe, são dez anos aí para frente pra saber. Minha prima já possui alguns sintomas, eu danço todos os dias para meu corpo reaprender a movimentar, e saber da minha história indígena foi o meu direito ao verbo, e a cura que os encantados me deram. 


espetáculo siaburu, fotografia stefano scheda, teatro ridotto, bologna, itália, 2025


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