Antropofagia I

- Tenho algo para contar para vocês, acho que vão rir muito… Eu tenho uma amiga que é antropóloga e ela foi para Argentina fazer uma pesquisa. Chegando lá encontrou um antropólogo que há muito tempo fazia pesquisa com o povo indígena, e curiosa para conhecer o que andava a fazer logo quis saber sobre suas pesquisas. Assustado ele contou para ela que o seu câmera tinha sido comido pelos índios. - Quando foi isso, professora?- disse - Há vinte anos atrás! 

Um estudante português começou a rir e contar que até a década de 70, a Itália contava histórias sobre os canibais que moravam na Amazônia. Olhei com uma cara de profunda tristeza, com o tamanho do preconceito, e disse: - Que absurdo! Que absurdo! 

- A pá, eu contei achando que vocês iriam rir - disse a professora. - É essa coisa do choque cultural! Os antropólogos portugueses vão fazer a pesquisa com seu caderninho nas mãos e são comidos pelos índios. 

- Então professora, - continuei - hoje os povos indígenas no Brasil estão localizados em vários contextos: os povos isolados, os povos aldeados com pouco contato com a civilização ocidental, os povos aldeados com mais de duzentos anos de contato com a civilização e os povos em contexto urbano. Os povos isolados não querem contato e por isso, eles podem agir com violência a qualquer contato com o homem branco. O antropólogo viu seu parceiro sendo comido? 

- Não, não viu! Ele fugiu! 

- Olha, - retruquei - a antropofagia que era o ritual que comia os guerreiros, algo muito específico que acontecia não sei em quantos anos. Não sei se era um ritual somente de representação que iriam devorar o inimigo ou algo que realmente transmitia poderes mágicos! Há registros que os povos indígenas do litoral não praticavam esse ritual, e os que realizavam eram em determinadas cerimônias: quando ganhavam uma guerra de território. E isso traz a presença da diversidade como fundamental para a percepção do ritual, porque sem o inimigo não teria o que celebrar! Os Goytacaz, por exemplo, ganharam uma guerra e pegaram a cabeça do inimigo, da comunidade rival, e quebraram no meio seu crânio para simbolizar a sua força. O povo Tupinambá tinha uma outra relação com o ritual antropofágico… 

- Mas é engraçado isso, professora! Há menos de vinte anos atrás já existia internet… Por que não virou notícia na mídia o que aconteceu? - disse um outro colega português.

- É porque foi uma amiga minha, que conheceu esse antropólogo. E pá, é uma piada… Esse choque cultural. 

- Eu acho muito engraçado essa relação - continuei - porque ao mesmo tempo há registros das práticas medievais de medicinas na Europa que se aproximam muito as práticas canibais nas Américas, vocês não riem sobre isso e nem se quer falam ou questionam… E não estou inventando nada, quem fala isso é a pesquisadora Silvia Federici (2020) quando irá analisar o processo de perseguição às mulheres, conhecido popularmente como caça às bruxas. Na pesquisa historiográfica que ela faz, tem gravuras dos europeus comendo o intestino do moribundo porque acreditavam que iriam ser curados de determinada doença. Isso é canibalismo! E porque há essa relação com a cultura indígena de tachar isso de aquilo, e escondem o que vocês também faziam? A Federici vai trazer essa relação paralela dos caças às bruxas e do processo da colonização. Vocês se viram no espelho e ficaram assustados com a própria imagem, e começaram a negar o corpo… a negaram a si mesmo. Por isso hoje estão tão afastados da natureza e aumentando drasticamente a poluição global. 

- Pois bem, vamos voltar ao texto, ao que nos interessa… A Conferência dos Pássaros.


dm.



O Ovo, 1928
Tarsila do Amaral




Crônica escrita em Portugal, durante a vivência de mobilidade acadêmica em Évora.

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